quinta-feira, 24 de março de 2011

Na contramão

o cinema, assim como quase todas as outras áreas, é um terreno infértil em gerar produtos verdadeiramente bons. No entanto, ele possui peculiaridades que o distancia de 90% das profissões ao mesmo tempo em que o aproxima das 10 % restantes (consideradas profissões instáveis e perigosas).

Medicina, por exemplo - e isso para pegar uma profissão já devidamente canonizada - possui uma trajetória mais previsível, ainda que obviamente sempre aberta a desvios. Dependendo da formação e da classe social do indivíduo recém-formado, pode-se prever sem dificuldades que o dinheiro pode não abundar, mas com certeza não faltará, e que um bom trabalho também não tardará muito a aparecer. Claro que, ao contrário do que a grande mídia quer nos fazer acreditar, a maioria dos médicos ganha mal e trabalha muito, assim como a maior parte dos jogadores de futebol (99,9%, no caso dos jogadores).

No cinema, alguns técnicos da velha guarda e TODOS os cursos que pipocam por aí querem fazer crer que existe um caminho canonizado: aquele de começar nas assistências e perder a saúde da melhor juventude nos sets, para somente "aos 40" (força de expressão) subir de posição e virar cabeça de equipe. Na prática, felizmente isso não é verdade, cabendo a escolha de tal caminho somente a alguém ingênuo demais ou com talento de menos.

Criativamente (e esse é o ponto que mais me interessa), o cinema é muito diferente de todas as outras artes. Na música, os exemplos reais nos mostram que o auge da carreira se dá no início, entre os 18 e os 28. Fora os ídolos mortos precocemente e as bandas que cedo encontram o fim, os grupos que têm uma carreira mais duradoura podem até se reinventar, transmutar, trocar de membros, ou simplesmente continuar a fazer a mesma coisa que sempre será seguramente vendável. No entanto, os melhores discos - que chamarei genericamente de "POPs" (que é o que a maioria de nós ouve) - são feitos por jovens. Assim como poemas literários. Grandes poetas geralmente fizeram o melhor da sua obra até os 25.

Música e poesia têm a ver com cinema. Principalmente com o cinema arrojado, de vanguarda. Não é à toa que as melhores músicas, os melhores poemas e os melhores filmes experimentais foram feitos por pessoas muito jovens. Muito imaturas. Mas cuja pouca maturidade vira qualidade justamente no momento em que ela se torna ímpeto incontrolável e por vezes desmedido de plena expressão, com altas doses de sinceridade e forte desejo de renovação: a curiosidade pela vida e pelo mundo é um dos fatores que torna a pessoa jovem, e a perda dela, independente da idade biológica, faz a pessoa adentrar o início da velhice.

Música jovem, poesia e cinema experimental se fazem de excessos. O desrespeito a certos limites é condição fundamental para a criação de tais formas de expressão.

Agora, pensemos na música madura, no romance de 600 páginas e no filme dito tradicional (longa metragem, narrativo, etc). As melhores obras dessas modalidades surgem de pessoas acima dos 40, 50. A maturidade traz a ordem, o melhor domínio e o melhor controle. Principalmente nos romances e nos longas narrativos, é necessário uma mente muito sólida e coerente para que a obra não se perca em desarmonia. Os jovens, por pensarem em muitas coisas, por sentirem muitas coisas, por desejarem muitas coisas ainda, tendem à instabilidade e à perda de foco. Portanto, a dissonância formal é mais recorrente nos jovens. Ela dificilmente é reiterada pelos mais sábios (júlio bressane é único), uma vez que o sábio não tem necessidade de destruição, mas sim, de construção.

Por fim, o que difere o cinema do romance é que para escrever 600 belas páginas você pode se isolar durante 3 anos em uma caverna, enquanto para se fazer um belo longa é necessária uma alta dose de saúde física (fazer um filme é um ato físico) e uma grande disposição em viver (o cinema se faz coletivamente, com pessoas reais). A Literatura favorece ao artista que abandona a vida para criar. No cinema, essa opção simplesmente não existe. Por isso, são poucos os grandes filmes feitos até hoje: poucos são os que envelhecem com saúde e disposição.

Em cinema, os filmes mais interessantes vêm dos jovens, mas as obras máximas, os filmes verdadeiramente influentes exigem uma maturidade que só é alcançada no exato momento em que aqueles amigos do colégio que se direcionaram para outras áreas profissionais já começam a entrar em declínio e estão pensando mais no fgts acumulado do que em correr qualquer tipo de risco. É por isso que filmar, por vários aspectos mas também por este aqui discutido, pode ser um potente ato que vai na contramão da sociedade produtiva atual - ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, agrega e aprimora essa mesma sociedade cuja lógica dificulta a prática do bom cinema.


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